quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Os Riscos da Informação na Rússia



Rússia - um país repleto de contrastes. Sua população viveu a era imperialista em que os czares dominavam tudo conforme a vontade própria; a era comunista em que a liberdade de expressão era tão reprimida quanto; e atualmente vivencia o capitalismo em suas mais variadas nuances: a desigualdade social prevalece sem que as pessoas tenham alternativas concretas no que concerne a uma maior possibilidade de mudança.
Os ricos da informação num país em que morrem jornalistas sem que se façam investigações e, portanto, ninguém é punido é o que você passa a conhecer agora.

Por Egnaldo Lopes
egnaldo@jeinforma.com
editor do JE em Goiânia


“Um miliciano de camiseta preta e calça de camuflagem ajoelhou-se no banco do passageiro da frente e mirou o fuzil no meu peito, gritando. Abri a porta à minha direita com tanta força que a maçaneta saiu na minha mão. Pulei na estrada”. Este é o relado do jornalista Lourival Sant’Anna, publicado no jornal O Estado de São Paulo ao tentar escapar de um confronto entre os militares da Rússia e da Geórgia que aconteceu durante a guerra entre os mesmos em agosto do ano passado quando o governo georgiano decidiu lutar para resgatar o território da Ossétia do Sul, uma província separatista que, com apoio russo, resistiu aos ataques, o que resultou em centenas de mortes de todos os lados.

Lourival foi, inclusive, preso e interrogado na Ossétia do Sul. Esta desavença já dura muito tempo e tem momentos de conflitos armados, com a interferência do ocidente, categoricamente representado pelo apoio dos Estados Unidos à Geórgia, o que transparece sem dúvida, a eterna ‘rixa’ entre a Rússia e o país do Tio Sam.

É neste emaranhado de províncias, territórios e cidades federais que se estabeleceu uma política atual de busca por maior acessibilidade da população aos bens de consumo, tendo em vista o crescimento econômico dos últimos anos, e pelo melhor bem-estar para a população economicamente ativa; mas que ao mesmo tempo restringe manifestações populares, por exemplo, já que este não é um direito inerente a qualquer cidadão que queira reclamar das ações do governo. Para se manifestar, é preciso autorização.


Jornalista Lourival Sant’Anna sendo levado para da Ossétia do Sul após ser preso e interrogado.

A população vive em um estado de submissão quase que completa em relação às ordens governamentais personificadas modernamente na figura de Vladimir Putin, o atual primeiro-ministro que tem tudo pra permanecer no poder por tempo indefinido, exercendo sua influência direta inclusive na eleição dos próximos presidentes da Rússia como aconteceu com o atual, Dmitri Medvedev, nas últimas eleições presidenciais em que até as prerrogativas dos cargos de presidente e primeiro-ministro foram alteradas para possibilitar a continuação do poder nas mãos de Putin, líder russo que veio da polícia investigativa controlada pelo governo, a KGB (Comitê de Segurança do Estado), lugar em que aprendeu as suas mais variadas técnicas de governabilidade ditada pelo militarismo fortificado e repressor.



Hoje, não há guerra ostensiva em território russo e é neste cenário que o jornalista brasileiro, Marcelo Torres, correspondente internacional do SBT na Inglaterra – frequentemente escalado para fazer reportagens especiais nos mais variados lugares do planeta – encontrou um país em que não se vê nas grandes cidades uma repressão tão descarada por parte do governo, mesmo porque a população não demonstra sinais de descontentamento e a criticidade da imprensa local é praticamente inativa: “Há jornais críticos ao governo e eles são "permitidos", mas, só no Novaya Gazeta, cinco foram assassinados nos últimos anos sem que o governo tenha se empenhado muito em esclarecer os casos. O governo também se esmerou em aumentar a influência em todos os canais de televisão e controla, além disso, os governos estaduais, que não são eleitos pelo voto do povo.

Assim, as tevês regionais também acabam por seguir a linha do governo central. Existe jornalismo crítico, mas ele ficou acuado num canto.”, conta o jornalista em entrevista exclusiva ao JE Informa, feita por e-mail.

Anna Politkovskaya é uma destas jornalistas do Novaya Gazeta: morta após fazer uma série de duras críticas ao governo russo. A jornalista mostrava as dificuldades sofridas pela população e denunciando abusos cometidos pelos militares russos durante os diversos conflitos armados dos quais fez a cobertura jornalística. Foi presa durante a guerra da Tchetchênia em 1999; misteriosamente envenenada em 2004 e morta dois anos depois, quando chegava em casa após um dia de trabalho. As investigações não chegaram a lugar algum, mesmo porque assim não poderiam, sob ordens de quem detém o poder na Rússia.

Hoje há um prêmio que leva o nome da jornalista para homenagear profissionais que merecem destaque pelo posicionamento comprometido com a verdade dos fatos e recentemente foi recebido por Natalya Estemirova, ex-colega de Politkovskaya, morta em julho deste ano na Tchetchênia, uma das Repúblicas da Federação Russa, quando investigava planos de milícias para incendiar casas de civis. O ‘Memorial’, grupo russo de defesa dos direitos humanos, pra quem ela trabalhava no caso, culpa o governo.

Foi investigando a morte de Anna Politkovskaya que o ex-tenente da KGB e por último escritor e jornalista, Alexsander Litvinenko, opositor de Putin, também foi assassinado através de envenenamento com Polônio-210, um material radioativo que fez com que fosse definhando e agonizando até a morte.


Os jornalistas Anna Politkovskaya e Alexsander Litvinenko, assassinados após criticas ao governo Putin.

Investigação novamente não faz parte do vocabulário do Serviço de Segurança da Federação Russa, o FSB, que assumiu as principais atribuições da antiga KGB, extinta com o fim da URSS. O poderio militar que o país, economicamente dependente das exportações de petróleo, encontra receita também na venda de produtos que vão abastecer o conflito armado em todo o planeta, sem distinção de nações através de uma padronização recomendada pelos organismos internacionais; o que vale é o lucro e a solidificação da união com países necessitados de produtos que a Rússia pode fornecer, independentemente de questões morais ou humanitárias. É a busca cada vez mais intensa em se distanciar do poderio dos Estados Unidos no mundo.



Estas questões ficam restritas mais à imprensa internacional, mas a população russa sabe o caminho que o governo decide tomar. Reflexo do governo socialista, os russos são praticamente todos alfabetizados; o país tem um dos centros de cultura mais importante do mundo, o Teatro de Bolshoi. O povo da Federação Russa abre mão de certa liberdade em troca das melhorias trazidas pelo governo; é uma conivência em relação aos atos do governo frente aos que tentam reportar os fatos, mesmo que sejam relativos a abusos cometidos em detrimento à própria população.

Não foi sempre assim, mas no momento em que a população tentou se fazer ouvida, o resultado foram várias mortes: o czar Nicolau II, em São Petersburgo não permitiu manifestações populares, culminando no chamado “domingo sangrento” em que várias pessoas foram mortas ao reivindicar melhores condições de vida e trabalho, mas foi este um dos fatos mais simbólicos na representação da mudança para um governo socialista, com a queda do imperialismo. A questão é que, na União Soviética de Lenin a situação de miséria e desigualdade social persistiu com a ascensão de Stalin que controlava a tudo e a todos.

Do império ao capitalismo: mazelas sociais e falta de liberdade de expressão.

Nicolau II, o último czar Lenin Stalin Iéltsin Putin, o primeiro-ministro militar

O irreverente Boris Iéltsin, primeiro presidente da era pós-socialista, iniciou um trabalho de privatizações extremamente mal feito, vendendo todas as empresas estatais a preço bem abaixo do valor real: as mazelas sociais persistiram. Putin dá inicio a uma política de dar aos russos o poder de consumo de bens e produtos dos mais variados aspectos: é o fascínio exercido pelo capitalismo numa sociedade ainda acostumada a sofrer as constantes mudanças de sistemas governamentais. “‘O Putin põe comida na mesa’, foi o que eu ouvi de muitos. O povo russo passou por tantas décadas de repressão que parece ter desaprendido a criticar o governo. Muitos estão desencantados, desanimados, acham que não adianta protestar. É um povo que aprendeu a ser pragmático.”, acrescenta Marcelo Torres.


Marcelo Torres e a tradutora Ekaterina Kopteva, em Moscou/ Arquivo Pessoal

A ida, em junho deste ano, do correspondente do SBT à Rússia, com o repórter cinematográfico Azul Serra, foi para a realização da série de reportagens denominada ‘Diário Russo’ em que pôde constatar que as coisas não permanecem inalteradas: neste ano, o crescimento do PIB do país não vai se fazer presente e isso pode sim significar uma queda da popularidade de Putin, muito embora ele ainda tenha muito do que se vangloriar, já que a maioria absoluta da população ainda o apóia e há muito o que ser desgastado para uma eventual reação do povo, mesmo porque todo o mundo sofre recessão em decorrência da crise econômica mundial.

A série de reportagens do jornalista brasileiro mostrou a realidade de um país ainda em processo de adaptação aos novos ares: “Obviamente, é um país com muitas máfias também. Muitas a serviços de políticos. Esse é um cuidado a ser sempre levado em consideração.”, conta Torres.


Marcelo Torres em Ecateremburgo: ao fundo, a ‘Igreja de Sangue’, local em que foi morta a família do último czar russo, Nicolau II. / Arquivo Pessoal


A potência emergente que com o Brasil, a Índia e a China, forma o BRIC, cresce e mostra estar concentrada nas mãos de um homem só: um militar frio e voltado à um plano político e militar que garanta sua continuidade no poder e por/para isso exerce o controle absoluto dos mecanismos que acredite serem importantes e estratégicos, numa demonstração de que há poder globalizado que não emane apenas da ainda maior potência econômica mundial. Democracia? Marcelo Torres responde: “A Rússia é um país de democracia intermediária. Não é tão democrático quanto o Brasil nem tão ditatorial quanto a China. Acho que se fôssemos fazer uma escala de democracia nos Brics, pela ordem, teríamos: Brasil, Índica, Rússia e China. Seriam os Birc.”.

É neste cenário que jornalistas buscam reportar os fatos. Não há neste país uma ideologia bem definida, com uma imposição e vigília constante do governo, como acontece na Coreia do Norte, pois o governante sabe que não precisa se deslocar muito para se fazer ser ouvido e a população sabe que precisa apenas se submeter a tais determinações para que possam ter o gozo imediato das particularidades do mundo contemporâneo e globalizado: basta não incomodar o governo, e assim faz também a maioria dos profissionais locais, já que são controlados por Putin, inclusive.



Seja como jornalista ou como cidadão, o governo russo dificilmente irá perturbar ou interferir, mesmo porque não há uma preocupação em se esconder tudo dos russos ou mesmo do mundo, mas não queira atrapalhar os seus planos, colocando empecilhos ao se divulgar o que se é feito de forma velada: reputação não é exatamente o que se quer, mas sim a governabilidade cada vez maior e Putin sabe que isso depende de certa aceitação por parte dos outros países, num mundo globalizado em que o jogo de interesses predomina.

+ Conteúdo
[] Leia a entrevista na íntegra com Marcelo Torres

[] Assista ao vídeo com o perfil do entrevistado



[] Leia o relato de Lourival Sant'Anna no Estadão

[] Leia o Blog do Jornalista Marcelo Torres