quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Bate-papo com Carlos Reiss

Ele foi a Israel em busca do mestrado. Mas o jornalista Carlos Reiss encontrou muito mais que isso em terras do Oriente Médio. Nos quatro anos que viveu em Israel, Reiss serviu ao exército do país, dirigiu durante dias na boleia de um caminhão e apesar de ter ficado longe dos conflitos no Líbano, postou todas as suas experiências e opiniões no seu blog_ pela semelhança de seu autor com o famoso personagem da comédia britânica, apelidado de Blog do Bean_ que neste ano ganhou nova versão após a volta do jornalista ao Brasil. Carlos Reiss fala sobre sua vida em Israel e sua opinião em relação a cobertura jornalística no Oriente Médio.

Carlos Reiss durante o período que passou no exército israelense, em 2006, durante os conflitos no sul do Líbano/Arquivo Pessoal



Por Fernando Galacine,
editor do JE em São Paulo


JE - Em seu blog você deixa claro a ideia da qual nem judeus, nem muçulmanos são bonzinhos no contexto do Oriente Médio. Mesmo longe do front de batalha, não se envolvendo diretamente em conflitos, lhe incomodou de alguma forma servir ao Exército israelense?

Carlos Reiss - Não, de forma alguma. Minha experiência servindo ao Exército israelense foi muito mais sociológica do que militar, e este era o meu objetivo. O Exército em Israel é o espelho para uma série de aspectos culturais fortíssimos que refletem em todo o resto da sociedade. Participar de alguma forma deste processo significa sentir-se parte do todo, englobado e inserido socialmente. Em outras palavras, alguém que não serviu não possui o mesmo grau de inserção na sociedade em relação àqueles que serviram, sendo que dentre outros fatores, os reflexos sociais giram em torno não só do exército em si como dos anos anteriores e posteriores ao serviço militar.

Sentir-se integrado significa compartilhar as mesmas experiências dos jovens israelenses, entender comportamentos, atitudes e até em menor escala gírias e programas de tv. Como eu disse, ninguém é bonzinho. Mas dentro do exército tentei absorver o mínimo de aspectos militares e o máximo no que diz respeito à bagagem cultural, o fato de sentir-se israelense como os outros, principalmente após os meses em que servi. Tudo ficou de certa forma diferente, como eu via as pessoas na rua e também como elas me viam.

JE - No Exército você teve companhia de soldados de diferentes nacionalidades. Havia algo parecido com patriotismo, vontade em servir Israel, por parte desses soldados que vinham de sociedades diferentes entre si? Ou eles cumpriam uma obrigação legal?

Este é um aspecto muito pessoal, cada indivíduo é levado por objetivos e aspirações diferentes. Vi pessoas extremamente patriotas, que queriam terminar o treinamento básico e já ingressar na preparação para fazer parte de algum grupo de elite (como um amigo inglês, que veio de Londres e só falava em ser um soldado combatente). Também vi pessoas, principalmente russos e ucranianos, que chegavam lá literalmente perdidos na vida e o exército lhe daria, de alguma forma, casa e comida. E vi pessoas que só pensavam em acabar logo e voltar para suas vidas em Israel; estudar, trabalhar, ficar com a família ou viajar.

Há de tudo, e também há de tudo dentro das próprias nacionalidades. Há muitos russos, mas nem todos “perdidos”. Há muitos norte-americanos e franceses, mas nem todos tão patriotas. Não é possível fazer uma divisão de comportamentos por nacionalidades. Como eu disse, o sentimento é muito individual. Mas existem as mais variadas motivações.

JE - Durante os conflitos no Líbano, em 2006, você escreveu em seu blog que Síria e o Irã são fontes de terrorismo. No que cabe a esse último país, você cita Mahmoud Ahmadinejad como um dos financiadores do Hizbollah. Você acredita que uma vitória de Mir Hossein Mousavi mudaria o quadro desse possível financiamento do terror pelo Irã, mesmo que a figura de um presidente por lá seja mais representante do que comandante?

Não sou especialista em Irã, por isso só posso comentar como a derrota e uma possível vitória do Sr. Mousavi repercutiria em Israel. Não acreditaria em grandes mudanças, muito pelo fato do próprio Governo direitista de Israel não mudar seu discurso perante o Irã, seja qual tenha sido o presidente iraniano eleito. O argumento é que Israel já estaria vacinado contra líderes que possuem um discurso interno e outro externo. É o legado de Arafat para o grupo do premiê Netanyahu.

Acho que uma mudança neste quadro só surtiria efeito se o governo israelense visse com os próprios olhos as possíveis alterações de rumo do Irã com um novo presidente. De qualquer forma, a vitória de Ahmadinejad não é ruim para Netanyahu. Ela fortalece politicamente o premiê através do discurso de união e de segurança nacional, que o fez vencer várias eleições em Israel, a principal delas em 1996. Algo como “o inimigo está próximo, estejamos atentos, precisamos de um governo forte e com mão-de-ferro”. Uma vitória de Mousavi, independente das ações iranianas, poderia aumentar a pressão dos partidos israelenses de esquerda sobre o Governo de Israel, com perda até de governabilidade.

JE - Você é jornalista. O Exército não teme por vazamento de informações quando profissionais dessa área entram para a corporação? Você tinha acesso a que tipo de informações? Julgava-as sigilosas?

A não ser que sua “profissão” dentro do exército seja a mesma do lado de fora, eles não querem saber se você é jornalista, engenheiro ou cozinheiro. Todas as pessoas que servem o exército possuem sua qualificação lá dentro. É claro que o médico pode ser médico do exército, o jornalista pode trabalhar na área de comunicação do exército e o engenheiro também. É uma opção tanto do soldado quanto do Q.I. (“quem indica”). Eu poderia tentar uma vaga na área de comunicação, mas recebi a orientação de que era possível tentar desde que assinasse por mais dois anos no exército. Não queria, por isso fui fazer outra coisa lá dentro.

Eu tinha acesso a informações única e exclusivamente referentes à minha base e ao meu trabalho. É claro que conversava com amigos, compartilhava histórias e ficava sabendo de muita coisa dos bastidores. Porém, durante a guerra, por exemplo, tinha informações mais claras sobre os bombardeios quando chegava em casa no fim de semana e ligava a televisão do que lá dentro com meus comandantes. No meu blog, eu publicava as informações que eu achava curiosas, que o público gostaria de ler e ficar sabendo. Não ia desenhar um mapa da base e assinalar onde estavam guardadas as armas e as munições. Mas falava do dia-a-dia lá dentro, das vigílias, dos treinamentos, do que acontecia comigo. E acho que foi uma boa escolha.

Cheguei a perguntar ao meu comandante, chamado Tal, se era possível eu conceder uma entrevista a uma rádio brasileira, que entrou em contato comigo no meio da guerra. Obviamente ele disse que eu não podia, que era necessário entrar em contato com a assessoria de comunicação do Exército. Dei a entrevista da mesma forma, contando mais sobre os brasileiros em Israel do que sobre a parte militar. As poucas informações que eu julgava sigilosas nunca foram alvo do interesse da imprensa e nem dos leitores do meu blog.

JE - O jornalista Yonatan Mendel, num artigo para a Revista Piauí no ano passado, escreveu que a mídia de Israel é tendenciosa e raramente escuta lados não israelenses nas questões. Você concorda? Qual o grau de confiança que a população israelense tem na imprensa local?

Em Israel, não há um dia sequer que a liberdade de imprensa não seja reverenciada. Basta folhear os jornais e ler denúncias, escândalos (como o do ex-presidente Moshe Katzav), investigações e opiniões. E digo porque o israelense é um sujeito que não tem papas na língua, e os jornais traduzem muito bem isso.

Mas quando o assunto é segurança nacional, tudo muda de figura. No discurso militar de segurança presente na imprensa israelense, concordo quando Yonatan afirma que existe o “nós” contra “eles. É a paranóia desse discurso da segurança, que em Israel é gigantesco, vence eleições e derruba governos. Na sequência desse discurso, como ele mesmo escreveu, vem a conduta da imprensa. Afirmam categoricamente que Israel nunca seqüestra. Israel detém. Que Israel nunca mata ninguém intencionalmente. Dizem que palestinos foram atingidos. Que Israel nunca ataca. Sempre responde a um ataque. Nisso estou de pleno acordo com o jornalista.

Porém, isso não quer dizer que a imprensa israelense não escute os dois lados. Escuta, apesar da pouca repercussão. Neste ponto, discordo do jornalista Yonatan Mendel, que ignora os critérios de noticiabilidade do jornalismo israelense. O que diz respeito a Israel ou a um israelense é mais importante para a imprensa israelense e merece mais destaque do que o que ocorre a um palestino. É um princípio básico do jornalismo.

De qualquer forma, vale a pena ler esse artigo “Vocabulário do jornalismo israelense”, publicado no Brasil pela revista Piauí. Desvenda outros vários mitos e há tempos já está na lista para atualizações futuras do Novo Blog do Bean.

JE - Ainda na questão da imprensa, pra você, a mídia internacional, incluindo a brasileira, retrata com isenção o cotidiano no Oriente Médio?

Esse é um assunto complicado e que exige mais que uma análise superficial sobre como é a cobertura dos conflitos. É claro que cada grupo vai sempre apontar que as reportagens são tendenciosas e que favorece o outro interessado. Com algumas poucas exceções (e isso é fácil perceber, existem exemplos na imprensa inglesa e norte-americana), não acredito nessa ladainha de imprensa pró-isso e anti-aquilo, de lobbys e manipulações. O grande problema é que a cobertura é muito imediatista e a velocidade da informação e das publicações não permite uma análise mais profunda sobre o que está acontecendo. Posso dar um exemplo. É muito comum observar manchetes nos grandes jornais do mundo como "Homem-bomba palestino mata 5 em mercado israelense" ou "Exército israelense bombardeia Gaza e mata 20". Os grandes veículos têm dificuldade de encontrar tempo, espaço e também didática para contextualizar a situação, explicar os porquês, dar nome aos bois e apresentar um aparato histórico.

Não nego que a imprensa possui critérios técnicos de noticiabilidade jornalística, como o fato de estarem sempre do lado do mais fraco (seja qual for), mas a cobertura do conflito é sim imediatista. Ontem morreram 2 de um lado, hoje mais 4 do outro e por aí vai. E a cobertura vai seguindo os moldes de uma novela global das 7; aquela em que o público acompanha o dia-a-dia sem muita profundidade e não se interessa muito por aquilo que passou. Aliás, ele nem se lembra exatamente do capítulo de ontem. Porque não interessa mais.

A guerra de versões existe, apesar de achar que é uma parcela muito pequena do que é publicado em termos dos grandes veículos de comunicação de massa. Jornalecos de esquina sempre vão existir. No próprio centro de qualquer capital brasileira é possível parar frente uma banca de jornal e adquirir periódicos (quase panfletos) que conclamam pelo "fim do estado nazista-sionista-terrorista do carniceiro Netanyahu" até boletins que sugerem que todos os palestinos são terroristas. Os grandes jornais brasileiros não fazem muita coisa a não ser republicar as matérias das grandes agências, estas mesmas matérias imediatistas. Muitas vezes os editores brasileiros bolam títulos e legendas infelizes para essas matérias que chegam das agências, demonstrando mais desconhecimento sobre o assunto do que falta de isenção.

JE - Seu novo blog traz a mensagem de ser um caçador de mitos. Que mitos, pra você, existem em relação ao Oriente Médio e que precisamos desvendar?

A idéia de desvendar mitos está muito ligada a essa “guerra de versões” que tanto árabes quanto judeus querem nos fazer descer goela abaixo através de informativos, sites etc. Após estudar algumas teorias do jornalista israelense David Bar-Illan, há cerca de 10 anos, sabia que era possível dar minha parcela de contribuição contra essa bobagem. Bar-Illan morreu em 2003 e deixou como legado o fato de conclamar os judeus do mundo inteiro a mergulhar de cabeça na guerra dos media, a lutar e defender Israel com unhas e dentes em todas as hipóteses, sempre. Qualquer crítica, qualquer argumento, qualquer posicionamento contrário a Israel é tido como abominável, antissemita, fascista por aí vai.

Essa teoria maniqueísta deu origem a vários jornais, revistas e sites, como o Israel´s Media Watch, Honest Reporting e sua versão brasileira, o De Olho na Mídia. A chamada "mídia judaica" fora de Israel abraçou a idéia e, ao invés de tentar reaproximar os jovens e buscar alternativas para o fim das comunidades judaicas na Diáspora (que é iminente, basta ver as estatísticas e as pesquisas), resolveu entrar nessa luta midiática. Ela monitora a imprensa e briga se algum jornal usa o termo "Palestina", esperneia se usam "extremistas" e não "terroristas", faz birra se acha que a matéria ou a manchete é pró-isso ou anti-aquilo. Tudo é motivo para defender Israel, tudo é manipulação, como se existisse um complô diabólico e o país não tivesse sua parcela de culpa nessa novela que já dura mais de 90 anos...

Eu não caio nessa. Também não caio nessa que os palestinos são pobre coitados, que sofrem diariamente opressão sem qualquer motivo, que não possuem sua parcela de culpa e suas técnicas de parecer sempre vitimizado. Também virou moda defender os palestinos, sejam nesses “movimentos sociais de esquerda” no Brasil ou até em partidos políticos, até para atingir os Estados Unidos. Defender os palestinos virou bandeira, causa dos que “lutam por um mundo melhor”.

Não caio em nada disso. E são esses mitos maniqueístas e de paranóias de perseguição que tentaremos desvendar neste blog, de que ninguém é bonzinho e todos possuem sua grande parcela de culpa. Tenho a ajuda de amigos de origem árabe, de judeus que ainda vivem em Israel, de jornalistas, sempre atrás de mitos a serem desvendados.

JE - Você acha que o envolvimento de comunidades internacionais nas questões árabe-israelenses ajuda na construção da tolerância entre os dois povos?

Se comunidades internacionais significam países desenvolvidos ou potências, não acredito. Os países fortes (Estados Unidos, Rússia, Japão e os que fazem parte da União Européia) podem (e devem) ajudar na construção de uma solução política. É o pontapé para começar a resolver o problema. A questão da tolerância, acredito eu, é mais importante no que diz respeito às comunidades judaicas e árabes pelo mundo afora.

Se a situação lá está quente, nós temos que dar o exemplo, estas comunidades. Mas a paranóia da segurança dentro das comunidades judaicas fora de Israel e a visão deturpada por parte também das comunidades árabes pelo mundo impedem que o exemplo seja dado. A desconfiança é total; nós aqui, eles lá. Os velhos guetos. Os países atuam em âmbito diplomático, através da mediação de acordos e auxílio em seus cumprimentos. As comunidades árabes e judaicas devem dar o exemplo quanto à tolerância, que é um processo mais complexo e demorado. E não dão.

JE - Segundo você, “O Antissemitismo cruel que cresce no mundo e a Demonização do Islã são fenômenos profundos, que ultrapassam acontecimentos e convenções. Eles não passam de geração à geração, passam de coração à coração”. Pra você, a paz no Oriente Médio é algo realmente alcançável? Se alcançável, tolerância seria o principal fator?


-Como eu disse, a paz no Oriente Médio depende, em primeiríssimo lugar, de uma solução geopolítica. Uma saída técnica, diplomática, tomada dentro dos foros formais internacionais como a própria ONU. A tolerância é um passo mais longo, demorado, que exige paciência, muito trabalho e algumas gerações.

Posso conviver em paz com meu vizinho, sem atritos, mas sem qualquer tipo de convivência entre nós e nossos filhos. Mas posso também conviver em paz com meu vizinho, dividindo a conta de condomínio e o conserto do portão, barateando o custo do aquecedor e da TV a cabo. Ou posso conviver em paz com meu vizinho, jantando juntos e sendo amigos. São várias as opções de “paz”.

Temos que sempre deslumbrar a melhor e mais promissora delas. Para isso, reafirmo, a solução política já passou da hora. Ela é o alicerce para a construção da tolerância.


JE - Para encerrar. Nesses três anos de Oriente Médio, você consegue traçar algum ponto social ou cultural marcante, comum a brasileiros, israelenses e palestinos?

Hoje em dia, é muito fácil traçar pontos em comum a todos os povos inseridos na aldeia global. Numa viagem ao interior do Egito, fiz um passeio pelo Nilo com um egípcio ouvindo um CD do Snoop Dog. No sul de Israel, peguei um táxi em que o motorista, ao saber que eu era brasileiro, não perguntou por Ronaldo, Rivaldo e Romário. Perguntou por Gerson, Rivellino e Falcão. A namorada israelense de um amigo norte-americano pedia músicas de Tom Jobim e Elis Regina para seu aparelho de MP3. E assim ia.

Tudo é fruto dessa interação, onde todos bebem da cultura de todos. Porém, sem grandes misturas, o árabe é mais parecido com o brasileiro do que é o israelense. No geral (e repito, no geral), o árabe é menos carrancudo, é mais aberto e mais bem humorado que o israelense comum estereotipado. Mas repito, todos são cidadãos do mundo. Todos interagem e absorvem características de outros povos. No fim das contas, o povo brasileiro é reverenciado no mundo todo; seja pelo futebol, pelo carnaval ou pela imagem de alegria que passa, seja ela verdade ou apenas uma imagem.