quarta-feira, 12 de agosto de 2009





As frases acima são de dois jornalistas. Os dois sul-americanos. Os dois em regiões próximas, no Oriente Médio. As coincidências acabam por aí. O primeiro relato, do jornalista Marcos Losekann, com exclusividade ao JE Informa, conta sobre seu sequestro pelo Hizbollah, grupo político-militar libanês, em 2008. O segundo relato, da jornalista argentina Tamara Lalli, para uma rádio californiana, descreve seu o sequestro pelo Mossad, o serviço de inteligência de Israel, também no mesmo ano. Num território minúsculo a dificuldade do trabalho da imprensa torna-se enorme por inúmeros fatores. Que comecemos a falar do assunto, sem qualquer estereótipo no qual o jornalismo, no Oriente Médio, é coibido por apenas um único lado.


Por Fernando Galacine
editor do JE em São Paulo


Em todo o Oriente Médio, calcula-se que trabalhem cerca de 400 jornalistas estrangeiros, boa parte deles em Israel e nos chamados Territórios Palestinos Ocupados. O grande boom de jornalistas na região aconteceu no início dos anos 90, ali próximo, para a cobertura da Guerra do Golfo, no Kuwait, com a transmissão um tanto mais fácil de informações por satélite. O Brasil, apesar de ter realizado com imprensa própria a cobertura da guerra, não manteve durante muito tempo repórteres fixos na região. Apenas na metade desta década, com a ajuda de transmissão banda larga, é que os veículos de comunicação brasileiros apostaram em cobertura própria no Oriente Médio, em gradativa substituição dos serviços noticiosos internacionais.

Um dos primeiros repórteres brasileiros que representou essa retomada da imprensa do país na cobertura do Oriente Médio foi o jornalista Marcos Losekann.Correspondente da TV Globo em Londres desde 2000, Losekann aceitou o convite de tornar-se o primeiro correspondente de uma emissora brasileira de TV aberta no Oriente Médio, em 2004. O jornalista já levava na bagagem a experiência de ter trabalhado na Amazônia brasileira, cobrindo desde abates de avião de garimpeiros na selva _com direito a perseguição pelo exército venezuelano_ a coberturas políticas sobre candidatos supostamente corruptos, o que levaram o jornalista a receber uma série de ‘recados’.

Talvez por essa razão, Losekann não tenha demorado muito a embarcar rumo a Jerusalém, mesmo com vários locais da região ainda sob as consequências da segunda Intifada_ palavra de origem árabe que significa ‘revolta’, nesse caso de parte da sociedade árabe contra Ariel Sharon, ex-primeiro-ministro israelense_ iniciada em 2000. “É evidente que a cobertura de uma guerra, bem como da intifada gera uma exposição muito grande do jornalista ao perigo, mas pelo menos numa região de conflito a gente sabe onde está esse ‘’perigo’’, sabe quem está atirando em quem... Eu costumo dizer que [...] eu jamais vivi perigo maior do que vivem os colegas que cobrem um tiroteio num morro do Rio ou na periferia de São Paulo, de Brasília, de Belo Horizonte...” conta o jornalista.


Marcos Losekann no início da coberura da guerra no sul do Líbano/Arquivo Pessoal


Losekann tem motivos para afirmar isso. Apesar da fama de ser um local violento para a imprensa_a foto acima passa essa sensação_ dos 127 jornalistas mortos em trabalho no mundo todo, em 2007, apenas um morreu na Palestina. Nenhum em Israel. O número é idêntico às mortes de jornalistas no Brasil ou Estados Unidos. O motivo da fama de local hostil vem da generalização do Oriente Médio como um todo. No ano passado, segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras, das 68 mortes de jornalistas, no ano passado, 16 delas aconteceram no Oriente Médio, a maior parte, portanto. Mas 70% dessas mortes ocorreram exclusivamente no Iraque, local com rara presença da mídia sul-americana.

Mesmo com argumentos que indicam uma relativa calma diante do novo local de trabalho, Marcos Losekann passou por um treinamento intensivo de sobrevivência em situações de risco, administrado por uma empresa de segurança de origem anglo-americana, a Centurion. A empresa é uma das várias especializadas em treinamento de resistência largamente utilizadas por jornalistas do mundo todo. Em seu site, há mapas que possibilitam o visitante descobrir as avaliações dos riscos de segurança feitas pela corporação a todos os países do mundo.

[Veja as avaliações de Israel, Palestina, Brasil e EUA, em inglês]

Trabalho parecido tem a CAECOPAZ, sigla em castelhano, para Centro Argentino para Treinamento Conjunto para a Paz. Nesse centro militar, perto da capital Buenos Aires, há treinamento quase exclusivo para jornalistas sul-americanos que deverão ser enviados para coberturas no Oriente Médio, em especial ao Líbano, Síria, Israel e Cisjordânia, nações de maior interesse para a América do Sul. O motivo da importância da cobertura desses países pela imprensa do continente é simples: as comunidades israelita e árabe são muito fortes em toda a América Latina. No Brasil, por exemplo, há cerca de sete milhões de pessoas com algum tipo de descendência libanesa. È um número maior do que a população do próprio Líbano. Irã, Iraque e outros países que integram o Oriente Médio interessam mais à mídia européia e norte-americana que mantêm tropas militares nesses países.



O kit acima não inclui um fuzil M-16, de fabricação norte-americana, mas esse era justamente o artigo que o jornalista Carlos Reiss, famoso na internet brasileira pelo seu ‘Blog do Bean’ não poderia desfazer-se de modo algum _sob o risco de pegar sete anos de cadeia caso o perdesse. Com nacionalidade brasileira e outra israelita, Reiss serviu a Tzavá, o exército israelense durante seis meses, em 2006. Obrigação comum a todos os que tem cidadania do país, sejam eles homens ou mulheres, o exército israelense é similar ao que o vestibular é para os jovens hoje em dia. “O Exército em Israel é o espelho para uma série de aspectos culturais fortíssimos que refletem em todo o resto da sociedade. Alguém que não serviu [o exército] não possui o mesmo grau de inserção na sociedade em relação àqueles que serviram. Dentro do exército tentei absorver o mínimo de aspectos militares e o máximo no que diz respeito à bagagem cultural”, diz Reiss ao JE Informa.

O jornalista serviu as forças armadas israelenses exatamente na mesma época na qual mísseis e tiros cruzavam o sul do Líbano e o norte de Israel. Era o conflito envolvendo tropas israelitas e tropas ligadas ao Hizbollah, partido político libanês.


Carlos Reiss dentro da boleia do caminhão que dirigiu por vários dias dentro do território israelense/ Arquivo Pessoal

Losekann e Reiss ficaram sempre muito próximos ao exército israelense_ cada um com sua especificidade, durante os combates. Enquanto Losekann, na maior parte das vezes, estava com as tropas de combate ao norte de Israel, Reiss estava longe dos conflitos, mas ainda assim servindo numa base militar mais ao sul do país. No entanto, a convivência com o exército israelense não garantiu aos dois jornalistas facilidade para as informações que cada um desejava. O correspondente da Globo encontrava enorme dificuldade de atravessar a fronteira com o Líbano e Reiss, mesmo fazendo parte do exército, não conseguiu, por exemplo, entrevistar o seu próprio comandante para uma rádio brasileira.

Em termos, a organização na divulgação das informações por parte do governo israelense ajuda a diferenciar a cobertura na região e acaba tornando-se, indiretamente, um dos grandes responsáveis pela dificuldade do trabalho jornalístico isento.

As diferenças

“Na maioria das matérias sobre o conflito há duas partes em luta: as Forças de Defesa de Israel de um lado e os palestinos de outro. Quando um incidente violento é relatado, as FDI confirmam ou o Exército diz, mas os palestinos alegam. [...] Mas quem são os palestinos? [...] Por que tão raramente há um nome, um departamento, uma organização ou uma fonte dessa informação? Será porque isso lhe daria um aspecto mais confiável?”

O trecho acima faz parte do artigo assinado pelo jornalista Yonatan Mendel, parte da edição de maio do ano passado da revista Piauí.

“Em Israel, não há um dia sequer que a liberdade de imprensa não seja reverenciada. Mas quando o assunto é segurança nacional, tudo muda de figura. É a paranóia desse discurso da segurança, que em Israel é gigantesco, vence eleições e derruba governos. Afirmam categoricamente que Israel nunca seqüestra. Israel detém. Que Israel nunca mata ninguém intencionalmente. Dizem que palestinos foram atingidos. Que Israel nunca ataca. Sempre responde a um ataque” afirma Carlos Reiss, que morou quatro anos em Israel, sobre a imprensa do país.

O debate sobre a imparcialidade do jornalismo israelense e árabe sobre questões internas, apesar de importante, será sempre discutível, nunca pontuado. Afinal, em cada lado das fronteiras há a defesa de uma versão da história, a enfatização do que é mais importante para o público de cada país.

Porém, quando os moldes desse tipo de cobertura passam a ser utilizados também pelo jornalismo internacional, criam-se riscos para o trabalho da imprensa estrangeira na região. E a tentação de utilizar versões dos fatos mais adaptáveis aos padrões israelenses não vem somente pela influência política da pequena nação encravada no deserto sobre as potências européias e aos Estados Unidos.

Vem principalmente da orquestrada organização que Israel criou para a divulgação da notícia pelas suas fontes, com o máximo de otimização. Hoje, quando um jornalista liga para a assessoria de imprensa do exército israelense ele é redirecionado para uma espécie de triagem que pergunta de qual país é o veículo para o qual ele trabalha. Com a resposta em mãos, o exército israelense direciona o jornalista para diferentes alas de sua assessoria, uma para cada região do planeta. Se o jornalista em questão for brasileiro, por exemplo, ele é direcionado para a central da América Latina e assim por diante. O resultado é a liberação de informações condizentes com a política diplomática de Israel em cada região do mundo e uma facilidade impressionante para entrevistas, releases e qualquer outro material informativo que o jornalista quiser. Um atrativo e tanto para editores no mundo inteiro que, se tentarem contato com representantes de vários setores na Palestina, terão uma cansativa espera até chegar à pessoa certa.



Junte a toda essa facilidade, uma característica de alguns setores da sociedade israelense de rotularem de anti-semita qualquer órgão de imprensa que divulgue uma notícia não muito bem avaliada pelos critérios israelenses. Israel conta com tecnologia tão avançada na disponibilização e disseminação de informações a seu favor que até mesmo um software é usado para fazer ‘bombar’ na internet notícias positivas à comunidade israelita. O Gyus.org oferece uma ferramenta que possibilita, ao internauta que baixá-la em seu computador, ter acessos instantâneos às mais recentes postagens e enquetes sobre Israel em qualquer site do mundo, permitindo com que o internauta participe_ muitas vezes sem ao menos ter domínio do idioma da página visitada_ e altere resultados de votações ou comentários em reportagens sobre o país. No começo do ano, a BBC foi obrigada a retirar uma enquete do ar, devido ao ataque da legião de soldados virtuais pró-Israel.

Nunca é demais, porém, enfatizar que, cada veículo de comunicação tem o dever de ser plural, mas quando não o é, deixar claro sua posição. Ser pró-Israel, ou pró-palestino, _como parece ser uma tendência para partidos políticos com bases socialistas, mais interessados em fazer oposição aos EUA, do que apoiar a própria causa que dizem defender_ é um direito. Mas, necessariamente, precisa ser divulgado, repassado ao público. E, necessariamente, respeitado pelas autoridades de qualquer região do planeta, em especial as israelenses e palestinas.



O resultado do não cumprimento de um princípio que deveria ser comum é uma imprensa quase automatizada a reportar assuntos sob determinada ótica, o que gera retaliações à imprensa internacional, seja por grupos armados ligados aos dois dos três grandes partidos políticos da região, Hizbollah e Hamas ou o serviço de inteligência do exército israelense, que veem jornalistas estrangeiros quase sempre como uma ameaça. “No Oriente Médio a perseguição é totalmente ligada à ideologia. Regimes fechados [...] não toleram críticas, não toleram a imprensa estrangeira, não aceitam um olhar de fora... E, ao primeiro impasse, eles decidem banir a presença de correspondentes. Já os terroristas, esses partem pra agressão, mesmo. Geralmente sequestram jornalistas para exigir alguma vantagem em troca ou os executam para exibir força” comenta Marcos Losekann.



Em suma, o trabalho da imprensa em Israel e Palestina, grandes protagonistas do Oriente Médio para a imprensa sul-americana, se tornará mais seguro quando jornalistas passarem a buscar o outro lado da história, contextualizar a informação, mostrar mais humanidade. Num território minúsculo, a dificuldade do trabalho da imprensa torna-se enorme por inúmeros fatores. Que comecemos a falar do assunto, sem qualquer estereótipo no qual o jornalismo, no Oriente Médio, é coibido por apenas um único lado.

+Conteúdo
[]Assista ao vídeo com o perfil dos entrevistados para essa reportagem




[]Leia entrevista na íntegra com Marcos Losekann
[]Leia entrevista na íntegra com Carlos Reiss
[]Leia o Blog do Bean